“Educar bem é saber dizer não aos filhos” - Entrevista à psicóloga Rosely Sayão

A psicóloga brasileira, de 67 anos, há muito que se tornou numa referência em relações familiares. Afirma que a obsessão dos pais ao quererem que os filhos tenham tudo e sejam felizes é o maior erro de quem hoje educa uma criança.

Retirado da Revista Sábado de 24 de Agosto de 2017

Por: Sónia Bento




Quando vai a escolas dar palestras, Rosely Sayão é “bombardeada” com os mais diversos dilemas de pais, seja com filhos bebés ou universitários. Para a psicóloga, o principal problema de quem educa uma criança é limitar o seu desenvolvimento com a superproteção. “Estamos a criar filhos absolutamente dependentes”, afirma a paulista, autora do livro Educação Sem Blá Blá Blá, uma compilação de textos publicados no jornal Folha de São Paulo, onde escreveu durante mais de duas décadas. Agora, é colunista da revista Veja. Com uma filha de 42 anos, e um filho de 38, Rosely entende que, como mãe, fez o melhor que podia. O que, para ela, é o que todos os pais devem pensar: “Faço o melhor que posso”. Dizer “não” sempre que for necessário é fundamental porque, como diz, “quem acha que o filho não quer autoridade, engana-se”.

Qual é a principal preocupação/angústia dos pais?

Na primeira infância, os pais preocupam-se muito com questões como a idade normal para tirar fraldas, começar a falar ou a andar. Eles esperam que o filho seja absolutamente normal ou até sobredotado. Preocupam-se também com a escolha da escola, com a alimentação e principalmente com as birras. E para minha surpresa sou chamada também para falar com pais de caloiros universitários.

Esses pais querem saber o quê?

Querem saber porque é que têm de acordar o filho para que não chegue atrasado, levá-lo à universidade porque ele não quer ir de transportes, controlar os trabalhos que tem de entregar, etc. Enfim, criaram filhos absolutamente dependentes e, de repente, só porque estão no ensino superior, querem que eles resolvam tudo sozinhos.

É por isso que diz que os adultos têm tornado a paternidade mais complicada nas últimas décadas?

Os pais têm tornado complicadas as coisas mais simples. Por exemplo, contrariar a criança – isso é dramático para os pais. Por outro lado, simplificam questões bastante complexas, relativizam queixas. Refere-se principalmente a problemas de saúde mental. Não sei como é em Portugal, mas no Brasil há muitas crianças – de classe média, que têm tudo e que estudam em boas escolas – que se suicidam. As questões de saúde mental têm sido relativizadas. É preciso conhecer bem os filhos.

Acha que os pais não conhecem bem os filhos?

Hoje a proximidade entre pais e filhos é intensa, mas não se conhecem de facto. Optam por monólogos em vez de diálogos. Só ouvem o que os miúdos pedem.

Como explica isso?

Os pais são imaturos. Olham em primeiro lugar para si e o filho é fruto de um desejo. Tem sido difícil para eles verem os filhos como pessoas. Vivemos numa época de pouca maturidade, de uma vida adulta muito infantilizada.

“Hoje os pais são o GPS dos filhos, quando devem ser uma bússola, dar o norte, para que eles possam fazer as suas escolhas”

Porque é que diz que é muito importante, e tão difícil para os pais, dizer “não”?

Os pais querem satisfazer os filhos plenamente, que eles sejam felizes, mas a felicidade é algo que a própria pessoa deve procurar para si. Satisfação imediata e prazer não é felicidade. Mas, para os pais, ver a cara contente do filho é uma prioridade. E como dizer “não” gera descontentamento, os pais acham que a criança vai ficar infeliz e não suportam isso.

Eles têm receio que os filhos lhes cobrem isso no futuro?

A cobrança virá de forma diferente porque nunca sabemos quando estamos a acertar ou a errar. Só conseguimos ver quando os filhos chegam a adultos. Quando os pais são mais companheiros e mais amigos, abstêm-se do papel de pai e de mãe, por isso é que muitos estudiosos dizem que estamos a criar gerações de órfãos. O processo educativo é um embate, e quem pensa que o filho não quer autoridade, engana-se.

As mães são mais exageradas na proteção?

Sim. Tradicionalmente, as mães sempre se ocuparam mais com os filhos. Lembro-me do caso de um adolescente que todas as semanas se esquecia da camisola para jogar futebol ou dos cadernos, e a mãe largava tudo para lhe ir levar as coisas à escola. Hoje, esse rapaz não consegue ficar em nenhum emprego porque não admite chamadas de atenção de um chefe, por exemplo. Ou seja, ao protegermos demasiado, subestimamos as capacidades das crianças, atrapalhamos o seu desenvolvimento e mais tarde elas não vão ser capazes.

O que quer dizer com “educar é apresentar a vida e não dizer como viver”?

Hoje, os pais têm um comportamento GPS, ou seja, dizem, faça isso e não faça aquilo, e quando o jovem se vê sozinho, perde o GPS. Os pais têm de ser uma bússola, dar o Norte, porque quem consegue identificar o Norte sabe localizar as outras direções e fazer as suas escolhas. A vida dos pais tem sido mais dizer como viver do que apresentar a vida. E aqui entra outra vez o “não”. Os pais tentam promover uma vida para os filhos sem contrariedades, mas é a partir das contrariedades que as crianças constroem a resiliência. Os adolescentes são pouco resilientes às adversidades e aos próprios erros.

“Os filhos hoje dependem dos pais para tudo, até para brincar. As crianças têm de ter infância e não agendas”.

Para que nada falte na formação dos filhos, muitos pais inscrevem-nos em diversas atividades. O que acha disso?

Acima de tudo, rouba-lhes tempo para eles estarem sem fazer nada, em off. É preciso ficar sem fazer nada para se conhecer melhor, ouvir-se, refletir no que se gosta e no que se quer fazer. Os filhos hoje dependem dos pais para tudo, até para brincar. As crianças têm de ter infância e não agendas de adulto. É que cada vez que saltamos uma etapa ela volta mais tarde, não sabemos quando mas volta. Por isso é que temos crianças “adultizadas” e adultos infantilizados. É preciso acertar esse passo.

Acha que ter a agenda condicionada pelos filhos faz com que os pais sintam que estão a cumprir a sua função?

Claro. Convence-os que estão a promover a formação para o futuro das crianças. Mas esse futuro será totalmente diferente daquilo que conhecemos hoje. Temos de formar mais nas questões humanas do que nas instrumentais. Os pais tornaram-se administradores da vida dos filhos e quanto mais correm mais ficam com a sensação de que estão a exercer bem o seu papel. Mas é o oposto. Estar com os filhos sem fazer nada, sem ficar preso ao telemóvel, é o que cria vínculos, diálogos e laços importantes.

Os pais devem impor tarefas domésticas mesmo que isso não agrade aos miúdos?

Se não for assim, formamos uma geração desabilitada para a vida. Eles não querem, mas é preciso aprender que há muita coisa que não queremos, mas temos de fazer. Isso é ensinar o que é a vida. Costumo dizer que um jovem ganha maturidade quando aprende a pensar e a conjugar os três conceitos: quero, posso e devo.

Quando as crianças fazem perguntas sobre sexo, o que se deve responder?

Nós perdemos a noção do que é uma criança. Quando explicamos as coisas com detalhes do mundo adulto, isso vai pesar muito à criança. Numa palestra, uma mãe contou-me que estava a assistir a uma cena erótica numa novela e o filho, de 9 anos, perguntou-lhe se ela e o pai também faziam aquilo. Ela respondeu que sim. O miúdo ficou apavorado, passou a ter pesadelos e acordava a chorar a meio da noite. Eu disse que ela não podia ter dito aquilo. Tinha de dizer qualquer coisa como: “A minha vida e a do seu pai quando estamos sozinhos, não é da sua conta”.

E porque é que há tanta dificuldade em dizer isso?

Porque têm medo, quando isso, afinal, ajuda o filho a encontrar o seu lugar dentro da família. O facto de os adolescentes aprenderem por eles próprios responsabiliza-os quanto à sua sexualidade. Há muitos pais que me dizem que os pais deles não lhes falaram de sexo e por isso eles acham que devem explicar tudo. Eu digo-lhes sempre: “E vocês não sobreviveram, não exercem a sexualidade? Por que é que acham que os vossos filhos não vão ser capazes de descobrir o sexo sozinhos?”.

Como lidar com a obsessão dos miúdos com as redes sociais?

Os pais estão colocando os filhos nas redes sociais muito cedo e não supervisionam. Aí, onde é preciso, os pais deixam-nos à solta, não dão proteção. Aqui no Brasil, uma menina de 7 anos tem um canal no Youtube que se chama “Coisa de Mulher”. Veja só isso! Expor uma criança ao mundo virtual, sem que ela tenha condições de o enfrentar, é uma irresponsabilidade. Costumo dizer aos pais que a Internet é uma praça pública e se não largamos uma criança sozinha na praça pública então porque a largamos na Internet? É um risco imprevisível, mas que terá consequências. Há muitas adolescentes que tiram fotos íntimas, mandam para o namorado, um namoro que vai durar dias ou semanas, e quando terminam ele espalha as imagens. Aí é um grande problema.

O que fazer quando o telemóvel é mais importante que tudo?

O problema é que os pais também não largam o telemóvel. Então, primeiro, tem de se criar regras para os adultos. Estar em casa deve significar estar presente. As crianças têm de perceber que são importantes para os pais, de facto e não só no discurso. Quando se chega a casa, o ideal é desligar os telemóveis e estar em família, seja para não fazer nada, conversar, discutir, enfim tudo o que acontece numa família.

Até que ponto é que os pais se devem meter na vida escolar dos filhos, quando eles se queixam de que são vítimas de um colega ou dos professores?

Deve-se encorajar o filho a que seja ele a resolver os seus problemas, se for necessário orientá-lo, mas é importante que seja ele a resolver. A escola é a primeira batalha que as crianças devem aprender a enfrentar sozinhas.

“Estar com os filhos sem fazer nada, sem ficar preso ao telemóvel, é o que cria vínculos e laços importantes”

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